sexta-feira, 30 de junho de 2017

DA REFORMA DO ESTADO À CRISE TEMER

*Artigo publicado originalmente na Revista Conceito Jurídico Administrativo & Político, ano I, junho/2017, ISSN 2526-9569


O pós-guerra trouxe à tona o Estado do Bem-Estar Social europeu, com características redistributivas e compensatórias, num modelo burocrático weberiano que objetivava dar aos setores públicos características de eficiência, meritocracia e impessoalidade. Após 1970, o capitalismo entrou numa crise de superprodução com o início do processo de globalização (CARINHATO, 2008) e as economias foram impactadas pelos dois choques do petróleo de 1973 e 1979 (PEREIRA, 2015). 

O Estado do Bem-Estar social viu sua receita ser achatada e suas despesas continuarem crescendo, tornando-se muito grande, inchado, caro, e, por consequência, endividado. A economia mundial foi jogada em recessão. Isso trouxe à tona o pensamento neoliberal, que propôs o Estado Mínimo e a autorregulação do mercado. Este pensamento ganhou força na Inglaterra com Margaret Tatcher (1979) e nos Estados Unidos com Ronald Reagan (1981). 

Na América Latina, o neoliberalismo chegou mais tarde, fortemente induzido pelo Consenso de Whashington (1989), que organizou um pacote de medidas de ajustamento com o FMI e o Banco Mundial para o continente latino-americano, incluindo (i) combate à inflação, (ii) dolarização das economias, (iii) valorização das moedas nacionais, (iv) ajuste fiscal, (v) reforma do Estado com privatizações, terceirizações, publicizações, reforma administrativa, (vi) desregulamentação dos mercados, (vii) liberalização comercial e financeira. Notadamente, este plano objetivava inserir a América Latina na globalização que crescia de forma galopante. 

O Brasil teria iniciado a aplicação do pensamento neoliberal [defendida por PEREIRA (1998) como social-democrática] a partir do Presidente Collor (1989), que se elegeu com proposta de solução messiânica a um cenário composto por hiperinflação, dívida externa, má distribuição de renda e estagnação do crescimento econômico, mas a ausência de resultados esperados e a ligação do Presidente Collor com denúncias de corrupção levaram ao seu impeachment. O vice-presidente Itamar Franco assumiu o país e o então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso implantou o Plano Real, cujo sucesso o elegeu Presidente da República em 1994.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, constituiu o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), nomeando titular Luiz Carlos Bresser-Pereira, que fez publicar o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (DO ESTADO, 1995), basicamente, atacando quatro pontos: (i) delimitar o tamanho do Estado; (ii) redefinir o papel regulador do Estado; (iii) recuperar a governança ou capacidade financeira e administrativa; (iv) aumentar a governabilidade ou capacidade política do governo. 

A Reforma do Estado da década de 90, portanto, ocorreu num ambiente de confiança do cidadão, satisfeito com o resultado do Plano Real e animado por fazer parte de um capitalismo globalizado. Isso conferiu ao Presidente Fernando Henrique Cardoso apoio para implantação das mudanças. A linha mestra destas mudanças, a princípio, giraria em torno de estabilização econômica, redução do tamanho do Estado, implantação de sistema gerencial objetivando maior eficiência dos serviços públicos e criação programas de trabalho, emprego, renda e combate à pobreza (CARINHATO, 2008).

Passou-se à abertura dos mercados e controle da moeda, permitindo a ampliação de negócios e crescimento de empregos. Reviu-se o tamanho do Estado, promovendo privatizações, terceirizações e publicizações, criando as agências reguladoras e dando solo fértil à proliferação das Organizações Sociais, transferindo a executores “não estatais” atividades da área social (CARINHATO, 2008). Aqui foi aberto um ponto-cego muito bem apresentado no filme “Quanto vale ou é por quilo”, que mostra o modo pelo qual o binômio “corrupção/falta de transparência” resultou no binômio “péssimos serviços públicos/enriquecimento ilícito”. 

A Constituição Federal de 1988 trouxe incontáveis avanços para proteção dos direitos individuais e sociais, ampliação e fortalecimento de instituições, maior clareza no sistema de freios e contrapesos, amparo à participação coletiva na construção jurídico-político-social. Porém, recebeu críticas da gestão Fernando Henrique Cardoso pelo protecionismo ao funcionalismo público e alto custo dos direitos previdenciários. Para contornar estes pontos, foi aprovada a Emenda constitucional n.19/1998 (BRASIL, 1998), fixando tetos para remuneração de servidores públicos, modificando critérios de estabilidade, dividindo categorias com funções exclusivas do Estado, entre outras alterações e a Emenda constitucional 20/1998 (BRASIL, 1998), que aumentou o tempo de serviço e a idade mínima para aposentadoria, passou a exigir tempo mínimo de exercício e de contribuição previdenciária e tornou o valor proporcional à contribuição.

Naturalmente, a Reforma do Estado, implantada na gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso, estabilizou economicamente o país, até então assolado pela inflação e estagnação econômica, permitindo sua entrada na economia globalizada. As medidas adotadas, inclusive a terceirizações, privatizações, publicizações, eram tendências mundiais e necessárias para reduzir o tamanho e a conta do Estado. A flexibilização promovida pela Reforma Administrativa chacoalhou o funcionalismo público, que foi compelido a ampliar suas competências e melhorar os serviços prestados sob pena de exoneração. 

Creio, porém, que três pontos atuaram muito fortemente no descontentamento popular com a política do Governo FHC: (i) as publicizações, da forma como foram feitas, transformaram serviços públicos em mercadorias, deslocando o foco do atendimento ao cidadão para a obtenção de lucro; (ii) a Reforma Administrativa causou insatisfação entre o funcionalismo público; (iii) a redução de direitos previdenciários fez com que a população olhasse com desconfiança para o governo que lhe retirava direitos constitucionais. Este descontentamento com as políticas sociais do Governo FHC, somado à ostentosa negociação do executivo com o legislativo para aprovação da reeleição, tornaram-se solo fértil para o fortalecimento dos movimentos sindicais e dos movimentos de esquerda, que mantinham ácido discurso contra o governo. 

Concluo: o foco muito fechado em torno do equilíbrio econômico, à custa de direitos sociais de um povo que já amargava longo período de ditadura, seguido de hiperinflação, desemprego, impeachement, acabou por não permitir que a Reforma do Estado dos anos 90 conduzisse o país para o pleno crescimento. O que se viu depois (Governos Lula, Dilma): (i) enorme ênfase nos direitos sociais; (ii) redistribuição de renda; (iii) manutenção de políticas econômicas do governo anterior que se mostraram promissoras; (iv) achatamento da classe média; (v) mensalão; (vi) Operação Lava Jato; (vii) Petrolão; (viii) intensificação da polarização do discurso político-social; (ix) recessão; (x) crise de governabilidade; (xi) impeachment; e agora, (Governo Michel Temer) (xii) tímido aceno ao crescimento econômico; (xiii) reformas que novamente retiram direitos sociais sob o argumento de serem necessárias à estabilidade fiscal e econômica; (xiv) mergulho em nova crise de governabilidade cujo desdobramento ainda está construção. 

Estamos aprisionando no caos, num país cuja riqueza e abundância natural não é capaz de garantir riqueza per capta, mas é capaz de sustentar desvios bilionários; composto por um povo originalmente formado por condenados e degredados, que após quinhentos anos ainda se assombra com a corrupção.



REFERÊNCIAS:

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