"Mas a corrupção é um mal tão versátil que, mesmo fortemente combatido, se reacomoda e volta a se manifestar em minúcias antes impensáveis. A reflexão que emerge é sobre a natureza da corrupção, que não está fora, e sim, dentro do ser humano, nas grandes e nas pequenas coisas, nos milhões e nos centavos". Fernanda Caprio, advogada eleitoralista.
No Brasil,
temos a garantia de que todo “poder emana do povo, que o exerce por meios de
representantes eleitos” nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da
Constituição Federal e de que a “soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” (artigo
14). A Constituição também garante o pluralismo e a autonomia partidária
(artigo 17, parágrafo 1º).[1] Estes
são instrumentos do regime democrático, resultado de inúmeras revoluções
Mas a revolução
que mais se tem visto ultimamente é o combate à corrupção, com especial menção
aos trabalhos da Operação Lava Jato iniciados em 2014. A legislação eleitoral,
contudo, tem feito contribuições que merecem destaque. Especialmente a partir
do ano de 2006, a legislação vem tentando combater trocas políticas nas
campanhas eleitorais, principalmente no que se refere à propaganda eleitoral.
A Lei n.9.504/1997[2], chamada
Lei das Eleições, nasceu num período pós Regime Militar e sob o signo do
Movimento Diretas Já. Por esta razão, seu texto inicialmente priorizava a
massificação da propaganda eleitoral, de forma a atingir o maior número
possível de eleitores para promover o regime democrático. Nas décadas de 1990 e 2000, esta lei permitia
a fixação de placas em postes de iluminação pública, em sinalização de
trânsito, em pontes, em pontos de ônibus, bem como outdoors, trios elétricos, showmícios, contratação de artistas,
utilização de brindes eleitorais como camisetas, chaveiros, bonés e outros (Lei
n.9.504/1997, artigos 26, IX, XI, XIII, XIV, 37, 39 e 42). Diante destas
permissões legais, fica fácil entender o termo “festa da democracia” para
designar o período de campanha eleitoral. “Os debates televisionados obrigam
candidatos a confrontar propostas; o acompanhamento da pesquisa de opinião é
feito pelos meios jornalísticos; a imagem dos candidatos e a propaganda
eleitoral passam a receber massivos investimentos; as campanhas são planejadas
acompanhando a flutuação da tendência da vontade eleitoral.”[3]
Mas cumpre à lei
regular ou coibir condutas praticadas no meio social que resultem em quebra da
harmonia idealizada. Assim, já em 1999,
a Lei n.9.840/1999[4] começou
a dar mostras do combate à corrupção eleitoral, incluindo o artigo 41-A na Lei
das Eleições n.9.504/1997 para criminalizar a “compra de voto” (captação de
sufrágio). No entanto, foi a partir de 2006 que o legislador efetivamente
começou a frear a propaganda eleitoral, pois esta já dava mostras de ter se
tornado mecanismo de clientelismo eleitoral.
Com efeito, a
Lei n.11.300/2006 vedou a propaganda em “postes de iluminação pública e
sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e
outros equipamentos urbanos”, alterando o artigo 37, caput, da Lei das Eleições
n.9.504/1997. Em 2013, a redação do dispositivo foi novamente alterada para
proibir os “cavaletes e assemelhados” pela Lei n.12.891/2013[5] e
em 2015 outra alteração proibiu os “bonecos e assemelhados” conforme a Lei n.13.165/2015.[6]
Tudo isso se destinou a limitar o abuso da utilização de bens públicos para
veiculação de propaganda eleitoral, evitando o favorecimento de candidatos ou
partidos que tivessem a “máquina pública” nas mãos. Além disso, a lei buscou
evitar que candidatos com mais recursos fixassem sua imagem com mais facilidade
na mente do eleitor pela quantidade de propaganda distribuída nas ruas.
Esta motivação,
somada à necessidade de se reduzir o apelo midiático, o custo das campanhas e
garantir a paridade de armas entre candidatos mais e menos abastados, levou
também a Lei n.11.300/2006[7] a revogar
o artigo 42 e acrescentar o parágrafo 8º, no artigo 39, da Lei das Eleições
n.9.504/1997, proibindo o uso de outdoors
em campanhas eleitorais. Outdoor é um
meio de propaganda caro, que atinge muito mais pessoas, em muito menos tempo,
com significativo apelo visual. Campanhas muito caras pressupõem vultosas
doações, que levam à criação de vínculos entre doadores e candidatos, vínculos
estes muitas vezes baseados em futuras trocas clientelistas entre o candidato
vitorioso e seus doadores de campanha.
O combate à propaganda
eleitoral massificada levou também o legislador a proibir pagamento de
impulsionamento de propaganda eleitoral na internet, vedação a princípio
prevista de modo amplo no artigo 57-C da Lei das Eleições n.9.504/1997, introduzido
pela Lei n.12.034/2009[8] e
melhor delimitada pelo artigo 23, da Resolução TSE n.23.457/2015.[9]
Mas os cuidados
da legislação eleitoral em prevenir a troca eleitoral por meio da propaganda não
pararam aí. Em 2009, a Lei n.12.034/2009 acrescentou o parágrafo 8º, ao artigo
37, da Lei das Eleições n.9.504/1997, dispondo que a veiculação de propaganda
em bens particulares (móveis ou imóveis) deveria ser gratuita (ex: residências,
veículos, terrenos, etc). Esta proibição mostra que o legislador procurou
combater a venda de espaço particular para propaganda eleitoral, já que o
eleitor deve apoiar candidato por convicção política e não por interesse econômico.
Quanto aos
populares showmícios, foram extintos em 2006. Estes eventos eram muito utilizados
nas campanhas eleitorais pois atraíam grande número de pessoas. Entre
apresentações de artistas, os candidatos faziam seus discursos. A prática foi
levando ao encarecimento dos comícios, com contratação de artistas cada vez
mais famosos no intuito de arregimentar mais e mais eleitores. Quanto mais
marcante um comício, mas força e popularidade o partidos e seus candidatos
ganhavam na campanha e na mente dos eleitores. Este tipo de troca de votos por
diversão foi vedada pela Lei n.11.300/2006, que introduziu o parágrafo 7º, no
artigo 39 e revogou os incisos IX e XI do artigo 26, ambos da Lei das Eleições
n.9.504/1997. Já os trios elétricos foram proibidos de trafegar sonorizados nas
ruas em 2009, pela introdução do parágrafo 10, no artigo 39, da Lei das
Eleições n.9.504/1997 (Lei 12.034/2009). Aqui o objetivo do legislador também
foi de impedir a troca de votos por diversão, pois passeatas e carreatas acabavam
se transformando em festas móveis nas ruas.
A Lei
11.300/2006 proibiu também o apoiamento de campanhas por entidades esportivas
(introdução do inciso IX, no artigo 24, da Lei das Eleições n.9.504/97), pois
times ou entidades esportivas têm o poder de direcionar o foco dos torcedores,
e ao investir em determinada campanha, voltavam essa atenção aos candidatos
beneficiados pelos respectivos investimentos. A mesma intenção de coibir o
fervor popular acrescentou o inciso VIII ao mesmo artigo 24, vedando o
apoiamento eleitoral por entidades beneficentes e religiosas, já que estas são
capazes de convergir votos de grupos unidos por ideologia, caridade ou fé. Em
ambos os casos, a troca eleitoral que poderia ser perpetrada entre candidatos e
líderes de tais entidades foi proibida pela legislação. Em especial à
utilização de igrejas para divulgação de candidaturas, recentemente o plenário
do Tribunal Superior Eleitoral chegou à seguinte conclusão “Participação ativa
de candidato em evento religioso e possível configuração de abuso de poder
econômico. O Plenário do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, entendeu
que, apesar de a legislação não dispor sobre o abuso de poder religioso como
ilícito eleitoral, pode caracterizar abuso de poder econômico a participação
ativa de candidato a mandato eletivo em evento religioso, no qual há pedido
expresso de voto em seu favor” (Recurso Ordinário n.2653-08 em 07 de março de
2017, oriundo de Porto Velho/Rondônia, relatoria do Ministro do TSE Henrique
Neves da Silva).[10]
Além da proibição
de apoio eleitoral por entidades religiosas e esportivas, o artigo 24, da Lei
9.504/1997 veda também doação de recursos estrangeiros (art. 24, I e VII), de
“órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com
recursos públicos” (art.24 II), de “concessionário ou permissionário do serviço
público” (art. 24, III), de “entidade de utilidade pública” (art.24, V). Em
2006, a Lei n.11.300/2006 incluiu neste rol “organizações não-governamentais
que recebam recursos públicos” (art.24, X) e “organizações da sociedade civil
de interesse público” (art. 24, XI). É fácil compreender que o objetivo do
legislador é impedir favorecimento de candidaturas com verba pública, uso
indevido da “máquina pública” por candidatos à reeleição, influência destes
sobre o terceiro setor para captar votos, troca de votos por promessas de
futuras nomeações, concessões ou permissões públicas. Os artigos 73 a 78, da
Lei n.9.504/1997, complementam a coibição ao uso indevido da “máquina pública”
elencando as “condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais”.
Foi também em
2006 que a propaganda eleitoral por meio de brindes foi proibida. A Lei n.11.300/2006
revogou o inciso XIII, do artigo 26 e introduziu o parágrafo 6º, no artigo 39
da Lei das Eleições n.9.504/1997, vedando “a confecção, utilização,
distribuição por comitê, candidato, ou com a sua autorização, de camisetas,
chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou
materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor”. Foi o fim das tão
populares camisetas com as quais os candidatos presenteavam eleitores. Esta vedação
persiste e tem interpretação extensiva, aplicando-se a qualquer objeto ou
promessa que possa ser entendida como “vantagem” conferida por candidato a
eleitor, podendo levar, inclusive, à criminalização da conduta por “compra de
voto” (artigo 41-A da Lei das Eleições n.9.504/1997).
Vê-se que o
legislador foi paulatinamente proibindo a utilização de propaganda eleitoral
como meio de troca política. O ponto de convergência foi firmado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), que na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
n.4650/2015 proibiu de doação por empresas a partidos e candidatos, limitando,
por consequência, a quantidade de recursos disponíveis para confecção/distribuição
de propaganda eleitoral. Esta vedação resultou da análise do binômio “financiamento
eleitoral versus composição do
parlamento brasileiros”: as 10 empresas que mais doaram nas eleições 2014
contribuíram com a eleição de 70% dos deputados federais pertencentes a 23
partidos políticos diferentes, conforme divulgou o Jornal Estadão.[11] Em trecho do acórdão na ADI n.4650/2015, o
STF registrou “...A doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes
de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes
grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em
pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano”. [12]
Mas a corrupção
é um mal tão versátil que, mesmo fortemente combatido, se reacomoda e volta a
se manifestar em minúcias antes impensáveis. A reflexão que emerge é sobre a
natureza da corrupção, que não está fora, e sim, dentro do ser humano, nas
grandes e nas pequenas coisas, nos milhões e nos centavos. Este cenário é muito
bem pontuado na obra O ex-Leviatã
brasileiro – do voto disperso ao clientelismo concentrado:[13] “Para
enorme contingente de brasileiros, os brasileiros não são confiáveis. Nem os
burocratas, os empresários, nem todo o catálogo de profissões. Escapam os
bombeiros, em todos os inquéritos, certamente porque o número de incêndios é
pequeno”.
[1] BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil: versão atualizada até a Emenda n. 95/2016. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>
Acesso em: 08 set. 2017.
[2] BRASIL, Lei n.9.504, de 30 de setembro de
1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9504.htm#art107>
Acesso em: 08 set. 2017.
[3] CAJADO, A. F. R.
et al. Eleições no Brasil: uma história de 500 anos. Brasília: Tribunal
Superior Eleitoral, 2014, p.64. Disponível em: < http://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/tse-eleicoes-no-brasil-uma-historia-de-500-anos-2014.pdf>
Acesso em: 08 set. 2017.
[4] BRASIL, Lei n.9.840, de 28 de setembro de
1999. Altera dispositivos da Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997, e da
Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9840.htm#art3>
Acesso em: 08 set. 2017.
[5] BRASIL, Lei n.12.891, de 11 de dezembro de
2013. Altera as Leis nos 4.737, de 15 de julho de 1965, 9.096, de 19 de
setembro de 1995, e 9.504, de 30 de setembro de 1997, para diminuir o custo das
campanhas eleitorais, e revoga dispositivos das Leis nos 4.737, de 15 de
julho de 1965, e 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12891.htm#art1>
Acesso em: 08 set. 2017.
[6] BRASIL, Lei n.13.165, de 29 de setembro de
2015. Altera as Leis nos 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de
setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral, para
reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos
Partidos Políticos e incentivar a participação feminina. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13165.htm#art4>
Acesso em: 08 set. 2017.
[7] BRASIL. Lei n.11.300, de 10 de maio de
2006. Altera as Leis nos 9.096, de 19 de setembro de 1995 - Lei dos
Partidos Políticos, 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas
para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11300.htm#art1>
Acesso em: 08 set. 2017.
[8] BRASIL, Lei n.12.034, de 29 de setembro de
2009. Altera as Leis nos 9.096, de 19 de setembro de 1995 - Lei
dos Partidos Políticos, 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas
para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12034.htm#art3>
Acesso em: 08 set. 2017.
[9] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral.
Resolução 23.457, de 15 de dezembro de 2015. Dispõe sobre propaganda eleitoral,
utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha
eleitoral nas eleições de 2016. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/legislacao-tse/res/2015/RES234572015.html>
Acesso em: 08 set. 2017.
[10] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral.
Recurso Ordinário n.2653-08, de 7 de março de 2017. Disponível em:
<http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-informativo-tse-no-3-ano-19>
Acesso em: 08 set. 2017.
[11] ESTADÃO: Brasil. Disponível em
<http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,as-10-empresas-que-mais-doaram-em-2014-ajudam-a-eleger-70-da-camara,1589802>
Acesso em: 08 set. 2017.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n.
4.650, de 17 de setembro de 2015. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10329542>
Acesso em: 08 set. 2017.
[13] SANTOS, W. G. O ex-leviatã brasileiro:
do voto disperso ao clientelismo concentrado. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira,
2006. p.9