terça-feira, 10 de outubro de 2017

O COMBATE À CORRUPÇÃO NA PROPAGANDA ELEITORAL

*Artigo publicado originalmente na Revista Conceito Jurídico, ano I, n.09, setembro/2017, ISSN 2526-8988

"Mas a corrupção é um mal tão versátil que, mesmo fortemente combatido, se reacomoda e volta a se manifestar em minúcias antes impensáveis. A reflexão que emerge é sobre a natureza da corrupção, que não está fora, e sim, dentro do ser humano, nas grandes e nas pequenas coisas, nos milhões e nos centavos". Fernanda Caprio, advogada eleitoralista.




No Brasil, temos a garantia de que todo “poder emana do povo, que o exerce por meios de representantes eleitos” nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal e de que a “soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” (artigo 14). A Constituição também garante o pluralismo e a autonomia partidária (artigo 17, parágrafo 1º).[1] Estes são instrumentos do regime democrático, resultado de inúmeras revoluções
Mas a revolução que mais se tem visto ultimamente é o combate à corrupção, com especial menção aos trabalhos da Operação Lava Jato iniciados em 2014. A legislação eleitoral, contudo, tem feito contribuições que merecem destaque. Especialmente a partir do ano de 2006, a legislação vem tentando combater trocas políticas nas campanhas eleitorais, principalmente no que se refere à propaganda eleitoral.
A Lei n.9.504/1997[2], chamada Lei das Eleições, nasceu num período pós Regime Militar e sob o signo do Movimento Diretas Já. Por esta razão, seu texto inicialmente priorizava a massificação da propaganda eleitoral, de forma a atingir o maior número possível de eleitores para promover o regime democrático.  Nas décadas de 1990 e 2000, esta lei permitia a fixação de placas em postes de iluminação pública, em sinalização de trânsito, em pontes, em pontos de ônibus, bem como outdoors, trios elétricos, showmícios, contratação de artistas, utilização de brindes eleitorais como camisetas, chaveiros, bonés e outros (Lei n.9.504/1997, artigos 26, IX, XI, XIII, XIV, 37, 39 e 42). Diante destas permissões legais, fica fácil entender o termo “festa da democracia” para designar o período de campanha eleitoral. “Os debates televisionados obrigam candidatos a confrontar propostas; o acompanhamento da pesquisa de opinião é feito pelos meios jornalísticos; a imagem dos candidatos e a propaganda eleitoral passam a receber massivos investimentos; as campanhas são planejadas acompanhando a flutuação da tendência da vontade eleitoral.”[3]
Mas cumpre à lei regular ou coibir condutas praticadas no meio social que resultem em quebra da harmonia idealizada.  Assim, já em 1999, a Lei n.9.840/1999[4] começou a dar mostras do combate à corrupção eleitoral, incluindo o artigo 41-A na Lei das Eleições n.9.504/1997 para criminalizar a “compra de voto” (captação de sufrágio). No entanto, foi a partir de 2006 que o legislador efetivamente começou a frear a propaganda eleitoral, pois esta já dava mostras de ter se tornado mecanismo de clientelismo eleitoral.
Com efeito, a Lei n.11.300/2006 vedou a propaganda em “postes de iluminação pública e sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos”, alterando o artigo 37, caput, da Lei das Eleições n.9.504/1997. Em 2013, a redação do dispositivo foi novamente alterada para proibir os “cavaletes e assemelhados” pela Lei n.12.891/2013[5] e em 2015 outra alteração proibiu os “bonecos e assemelhados” conforme a Lei n.13.165/2015.[6] Tudo isso se destinou a limitar o abuso da utilização de bens públicos para veiculação de propaganda eleitoral, evitando o favorecimento de candidatos ou partidos que tivessem a “máquina pública” nas mãos. Além disso, a lei buscou evitar que candidatos com mais recursos fixassem sua imagem com mais facilidade na mente do eleitor pela quantidade de propaganda distribuída nas ruas.
Esta motivação, somada à necessidade de se reduzir o apelo midiático, o custo das campanhas e garantir a paridade de armas entre candidatos mais e menos abastados, levou também a Lei n.11.300/2006[7] a revogar o artigo 42 e acrescentar o parágrafo 8º, no artigo 39, da Lei das Eleições n.9.504/1997, proibindo o uso de outdoors em campanhas eleitorais. Outdoor é um meio de propaganda caro, que atinge muito mais pessoas, em muito menos tempo, com significativo apelo visual. Campanhas muito caras pressupõem vultosas doações, que levam à criação de vínculos entre doadores e candidatos, vínculos estes muitas vezes baseados em futuras trocas clientelistas entre o candidato vitorioso e seus doadores de campanha.
O combate à propaganda eleitoral massificada levou também o legislador a proibir pagamento de impulsionamento de propaganda eleitoral na internet, vedação a princípio prevista de modo amplo no artigo 57-C da Lei das Eleições n.9.504/1997, introduzido pela Lei n.12.034/2009[8] e melhor delimitada pelo artigo 23, da Resolução TSE n.23.457/2015.[9]
Mas os cuidados da legislação eleitoral em prevenir a troca eleitoral por meio da propaganda não pararam aí. Em 2009, a Lei n.12.034/2009 acrescentou o parágrafo 8º, ao artigo 37, da Lei das Eleições n.9.504/1997, dispondo que a veiculação de propaganda em bens particulares (móveis ou imóveis) deveria ser gratuita (ex: residências, veículos, terrenos, etc). Esta proibição mostra que o legislador procurou combater a venda de espaço particular para propaganda eleitoral, já que o eleitor deve apoiar candidato por convicção política e não por interesse econômico.
Quanto aos populares showmícios, foram extintos em 2006. Estes eventos eram muito utilizados nas campanhas eleitorais pois atraíam grande número de pessoas. Entre apresentações de artistas, os candidatos faziam seus discursos. A prática foi levando ao encarecimento dos comícios, com contratação de artistas cada vez mais famosos no intuito de arregimentar mais e mais eleitores. Quanto mais marcante um comício, mas força e popularidade o partidos e seus candidatos ganhavam na campanha e na mente dos eleitores. Este tipo de troca de votos por diversão foi vedada pela Lei n.11.300/2006, que introduziu o parágrafo 7º, no artigo 39 e revogou os incisos IX e XI do artigo 26, ambos da Lei das Eleições n.9.504/1997. Já os trios elétricos foram proibidos de trafegar sonorizados nas ruas em 2009, pela introdução do parágrafo 10, no artigo 39, da Lei das Eleições n.9.504/1997 (Lei 12.034/2009). Aqui o objetivo do legislador também foi de impedir a troca de votos por diversão, pois passeatas e carreatas acabavam se transformando em festas móveis nas ruas.
A Lei 11.300/2006 proibiu também o apoiamento de campanhas por entidades esportivas (introdução do inciso IX, no artigo 24, da Lei das Eleições n.9.504/97), pois times ou entidades esportivas têm o poder de direcionar o foco dos torcedores, e ao investir em determinada campanha, voltavam essa atenção aos candidatos beneficiados pelos respectivos investimentos. A mesma intenção de coibir o fervor popular acrescentou o inciso VIII ao mesmo artigo 24, vedando o apoiamento eleitoral por entidades beneficentes e religiosas, já que estas são capazes de convergir votos de grupos unidos por ideologia, caridade ou fé. Em ambos os casos, a troca eleitoral que poderia ser perpetrada entre candidatos e líderes de tais entidades foi proibida pela legislação. Em especial à utilização de igrejas para divulgação de candidaturas, recentemente o plenário do Tribunal Superior Eleitoral chegou à seguinte conclusão “Participação ativa de candidato em evento religioso e possível configuração de abuso de poder econômico. O Plenário do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, entendeu que, apesar de a legislação não dispor sobre o abuso de poder religioso como ilícito eleitoral, pode caracterizar abuso de poder econômico a participação ativa de candidato a mandato eletivo em evento religioso, no qual há pedido expresso de voto em seu favor” (Recurso Ordinário n.2653-08 em 07 de março de 2017, oriundo de Porto Velho/Rondônia, relatoria do Ministro do TSE Henrique Neves da Silva).[10]
Além da proibição de apoio eleitoral por entidades religiosas e esportivas, o artigo 24, da Lei 9.504/1997 veda também doação de recursos estrangeiros (art. 24, I e VII), de “órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos públicos” (art.24 II), de “concessionário ou permissionário do serviço público” (art. 24, III), de “entidade de utilidade pública” (art.24, V). Em 2006, a Lei n.11.300/2006 incluiu neste rol “organizações não-governamentais que recebam recursos públicos” (art.24, X) e “organizações da sociedade civil de interesse público” (art. 24, XI). É fácil compreender que o objetivo do legislador é impedir favorecimento de candidaturas com verba pública, uso indevido da “máquina pública” por candidatos à reeleição, influência destes sobre o terceiro setor para captar votos, troca de votos por promessas de futuras nomeações, concessões ou permissões públicas. Os artigos 73 a 78, da Lei n.9.504/1997, complementam a coibição ao uso indevido da “máquina pública” elencando as “condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais”.
Foi também em 2006 que a propaganda eleitoral por meio de brindes foi proibida. A Lei n.11.300/2006 revogou o inciso XIII, do artigo 26 e introduziu o parágrafo 6º, no artigo 39 da Lei das Eleições n.9.504/1997, vedando “a confecção, utilização, distribuição por comitê, candidato, ou com a sua autorização, de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor”. Foi o fim das tão populares camisetas com as quais os candidatos presenteavam eleitores. Esta vedação persiste e tem interpretação extensiva, aplicando-se a qualquer objeto ou promessa que possa ser entendida como “vantagem” conferida por candidato a eleitor, podendo levar, inclusive, à criminalização da conduta por “compra de voto” (artigo 41-A da Lei das Eleições n.9.504/1997).
Vê-se que o legislador foi paulatinamente proibindo a utilização de propaganda eleitoral como meio de troca política. O ponto de convergência foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.4650/2015 proibiu de doação por empresas a partidos e candidatos, limitando, por consequência, a quantidade de recursos disponíveis para confecção/distribuição de propaganda eleitoral. Esta vedação resultou da análise do binômio “financiamento eleitoral versus composição do parlamento brasileiros”: as 10 empresas que mais doaram nas eleições 2014 contribuíram com a eleição de 70% dos deputados federais pertencentes a 23 partidos políticos diferentes, conforme divulgou o Jornal Estadão.[11]  Em trecho do acórdão na ADI n.4650/2015, o STF registrou “...A doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano”. [12]
Mas a corrupção é um mal tão versátil que, mesmo fortemente combatido, se reacomoda e volta a se manifestar em minúcias antes impensáveis. A reflexão que emerge é sobre a natureza da corrupção, que não está fora, e sim, dentro do ser humano, nas grandes e nas pequenas coisas, nos milhões e nos centavos. Este cenário é muito bem pontuado na obra O ex-Leviatã brasileiro – do voto disperso ao clientelismo concentrado:[13] “Para enorme contingente de brasileiros, os brasileiros não são confiáveis. Nem os burocratas, os empresários, nem todo o catálogo de profissões. Escapam os bombeiros, em todos os inquéritos, certamente porque o número de incêndios é pequeno”.




[1] BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: versão atualizada até a Emenda n. 95/2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 08 set. 2017.
[2] BRASIL, Lei n.9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9504.htm#art107> Acesso em: 08 set. 2017.
[3] CAJADO, A. F. R. et al. Eleições no Brasil: uma história de 500 anos. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 2014, p.64. Disponível em: < http://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/tse-eleicoes-no-brasil-uma-historia-de-500-anos-2014.pdf> Acesso em: 08 set. 2017.
[4] BRASIL, Lei n.9.840, de 28 de setembro de 1999. Altera dispositivos da Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997, e da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9840.htm#art3> Acesso em: 08 set. 2017.
[5] BRASIL, Lei n.12.891, de 11 de dezembro de 2013. Altera as Leis nos 4.737, de 15 de julho de 1965, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 9.504, de 30 de setembro de 1997, para diminuir o custo das campanhas eleitorais, e revoga dispositivos das Leis nos 4.737, de 15 de julho de 1965, e 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12891.htm#art1> Acesso em: 08 set. 2017.
[6] BRASIL, Lei n.13.165, de 29 de setembro de 2015. Altera as Leis nos 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral, para reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos Partidos Políticos e incentivar a participação feminina. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13165.htm#art4> Acesso em: 08 set. 2017.
[7] BRASIL. Lei n.11.300, de 10 de maio de 2006. Altera as Leis nos 9.096, de 19 de setembro de 1995 - Lei dos Partidos Políticos, 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11300.htm#art1> Acesso em: 08 set. 2017.
[8] BRASIL, Lei n.12.034, de 29 de setembro de 2009.  Altera as Leis nos 9.096, de 19 de setembro de 1995 - Lei dos Partidos Políticos, 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12034.htm#art3> Acesso em: 08 set. 2017.
[9] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Resolução 23.457, de 15 de dezembro de 2015. Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral nas eleições de 2016. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/legislacao-tse/res/2015/RES234572015.html> Acesso em: 08 set. 2017.
[10] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário n.2653-08, de 7 de março de 2017. Disponível em: <http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-informativo-tse-no-3-ano-19> Acesso em: 08 set. 2017.
[11] ESTADÃO: Brasil. Disponível em <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,as-10-empresas-que-mais-doaram-em-2014-ajudam-a-eleger-70-da-camara,1589802> Acesso em: 08 set. 2017.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 4.650, de 17 de setembro de 2015. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10329542> Acesso em: 08 set. 2017.
[13] SANTOS, W. G. O ex-leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2006. p.9