quarta-feira, 16 de agosto de 2017

ENTRE A DEMOCRACIA E A PANCADARIA

*Artigo publicado originalmente na Revista Republicana, n.41, julho/2017, ISSN 2526-8929




As pessoas costumam entender democracia com um regime onde reina a liberdade total. Democracia, no entanto, não é bem isso. Democracia é um regime que prevê uma série de instrumentos, como o voto universal, o pluralismo partidário, as eleições livres, a tripartição dos poderes, a representatividade política, a igualdade perante a lei, a submissão ao Estado de direito.
Reflita melhor sobre cada um destes pontos. Não é bem da liberdade de um único indivíduo que estamos falando, e sim, de respeito à liberdade de todos os cidadãos. Nos calorosos debates que têm sido travados atualmente, a democracia é invocada na primeira oposição que um debatedor apresenta sobre determinada premissa. Daí em diante, o que se observa é o deslocamento do debate para ofensas pessoais. Viver uma democracia, por outro lado, significa construir diariamente o respeito às diferenças.
É natural que nosso povo não esteja familiarizado com a democracia. Estamos prestes a completar trinta anos de democracia efetivamente garantida por uma Carta Constitucional (1988) e temos uma história marcada pela escravidão, “voto de cabresto”, ditadura, patrimonialismo. Só recentemente as pessoas começaram a desviar o foco do futebol para a política nacional. E o que motivou isso? A crise econômica e política que se instalou a partir de 2014 e se aprofundou em 2016 nos fez esquecer nomes de artistas e esportistas e decorar nomes de deputados, senadores, juízes e ministros.
Ao mesmo tempo em que isso nos transformou num povo mais politizado, também nos tornou intolerantes às opiniões contrárias. Não podemos esquecer, no entanto, que a corrupção é ambidestra, não é de esquerda, nem de direita. Assim, diante da corrupção, não temos que nos digladiar defendendo esse ou aquele lado, temos sim, que defender a ética, a transparência, a legalidade. O eminente Prof. Mário Sergio Cortella é brilhante ao definir que “democracia não é ausência de ordem, e sim, ausência de opressão”. E essa opressão não é somente aquela que advém do governo, mas também, aquela que é disseminada pelo próprio povo.
Devemos olhar para o momento atual como uma enorme lição de cidadania. Finalmente estamos tendo a oportunidade de aprender a colocar em prática os instrumentos democráticos com os quais a nossa Constituição Federal nos presenteou. Vale pensar sobre a máxima de Eça de Queirós: "a democracia não é uma virtude da idade, é uma justiça eterna." 

APLICAÇÃO DE ACCOUNTABILITY NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

*Artigo publicado originalmente na Revista Estratégia Marketing Político - edição de julho-agosto/2017 ISSN 2318-3586



O termo accountabilily não encontra literal na língua portuguesa, mas tem sido utilizado como sinônimo de “responsabilização”. Esta tradução, para os estudiosos do tema, engloba vários níveis que se complementam: para Anna Maria Campos, o termo deve corresponder a responsabilidade objetiva; para Adam Przerworski, exige previsão e aplicação de penalidades; para Andreas Schedler, prescinde de prestação de contas e de punição; para Guillermo O´Donnell, deve ocorrer de forma vertical e horizontal. Em suma, accountability compreende responsabilização, prestação de contas, fiscalização e punição.[1] 
Anna Maria Campos[2] destaca, ainda, que accountabilily tem ligação estreita com a democracia, pois não há como se exigir prestação de contas, nem responsabilização, em regimes ditatoriais. Nas palavras de Luiz Carlos Bresser Pereira[3], “sem dúvida um objetivo intermediário fundamental em qualquer regime democrático é aumentar a ‘responsabilização’ (accountability) dos governantes”. E complementa que a governabilidade na democracia depende de (i) existência de instituições políticas que promovam a comunicação entre Estado e sociedade civil; (ii) mecanismos de accountability de políticos e burocratas; (iii) equilíbrio entre demandas da sociedade e atendimento pelo governo; (iv) manutenção de um contrato social básico.
E é a democracia que vem promovendo descentralização e maior transparência para ações governamentais em nosso país. Vejamos os mecanismos adotados no Brasil nas últimas décadas.
É sabido que a Constituição Federal de 1988 deu grande amplitude à participação social na gestão pública. Em seu artigo 37, caput, instituiu os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Mas não foi só. Esta Carta Constitucional introduziu os conselhos municipais, o orçamento participativo, o plebiscito, a ação popular e ainda fortaleceu o Ministério Público e os Tribunais de Contas.
Tivemos o Movimento “Diretas Já” de 1983-1984. Como advento da Lei 8.429/92, conhecida como “Lei de improbidade administrativa”, foram fixadas regras para punição de agentes públicos por enriquecimento ilícito no exercício de mandato, emprego ou função pública na administração direta, indireta ou fundacional. E foi dada maior transparência para as contratações feitas pela administração pública a partir da Lei 8.666/93, como “Lei de licitações”.
Em 1995 entrou em vigor a Lei dos partidos políticos n. 9.096/95, que estabeleceu novas regras e limitações para funcionamento das siglas partidárias. O Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, substituiu a administração burocrática pela gerencial, deslocando o controle de procedimentos para atingimento de resultados, dando lugar, ainda, à mobilização da sociedade civil mediante Organizações Não-Governamentais (ONGs) e fortalecimento de entidades representativas. No âmbito eleitoral, entraram em vigor, também, a Lei das eleições n.9.504/97, que somou novas regras às disputas eleitorais, seguida da Lei n.9.840/99, que ampliou enquadramentos de crimes eleitorais e penalidades.
Com o advento da Lei Complementar 101/2000, conhecida como “Lei de responsabilidade fiscal”, tornou-se regra a transparência e planejamento nas contas públicas e responsabilização na gestão fiscal. Em 2001 foi criada a Controladoria Geral da União (CGU), com funções de prevenção, fiscalização, correição e ouvidoria, que em 2016 foi integrada ao Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Também em 2001, o artigo 53 e parágrafos da Constituição Federal foram alterados pela Emenda Constitucional n.35/2001, permitindo que deputados federais e senadores passassem a ser processados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sem necessidade de licença prévia da respectiva Casa.
A TV Senado (1995), TV Câmara (1998) e TV Justiça (2002) deram grande amplitude e acesso popular à tramitação da legislação e ao trabalho do poder judiciário. Estes canais, associados ao impacto da atuação da imprensa e das redes sociais, parecem estar contribuindo significativamente para o crescimento da participação do cidadão na construção legal e jurídica nacional. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi instituído pela Emenda Constitucional 45/2004, no intuito de permitir maior controle e transparência administrativa, financeira e processual aos trabalhos do Poder Judiciário.
Em 2008 o Supremo Tribunal Federal (STF) editou a Súmula Vinculante 13/2008, passificando a interpretação jurisprudencial sobre o nepotismo. A obrigatoriedade dos Portais da Transparência, destinados para disponibilizar instantaneamente, por meios eletrônicos de acesso público, informações sobre execução orçamentária e financeira da União, Estados, Distrito Federal Municípios, foi instituída pela Lei Complementar 131/2009. Em 2010 a Lei Complementar 135/2010, conhecida como “Lei da ficha limpa”, ampliou enormemente o alcance da Lei Complementar 64/90, “Lei das inelegibilidades”, ampliando o rol de candidatos impedidos de concorrer nas eleições.
Em 2013 foi a vez do “Movimento passe-livre”. Desde então observa-se uma onda incansáveis de protestos e movimentos nascidos de mobilização por entidades de classe e redes sociais. Em março de 2014 teve início da “Operação Lava Jato”, originária da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR e desdobrada em dezenas de fases sem data para terminar, cujo papel vem sendo trazer a público, punir e resgatar montantes desviados decorrentes de corrupção empresarial e política. Sob sua influência diversas outras “Operações” judicializadas, foram colocadas em atividade, com os mesmos objetivos. Em 2015, o clamor social (e a deficiência na governabilidade) eclodiram no impeachment, pedido este instrumentalizado por três advogados na condição de cidadãos.  Em 2016, o Projeto de Lei n.4.850/2016, conhecido como “10 Medidas Contra a Corrupção”, começou seu trâmite nas Casas Legislativas.
Ao longo dos últimos anos, a legislação eleitoral reguladora da prestação de contas eleitoral e partidária, vem se endurecendo, impondo regras mais firmes e penalidades mais ásperas, como se vê pela das Resoluções editadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) conforme poder normativo previsto no artigo 23, IX, do Código Eleitoral, a saber, Resolução TSE 21.841/2004, Resolução TSE 23.432/2014, Resolução TSE 23.463/2015 e Resolução TSE 23.464/2015. Também se verifica endurecimento da legislação eleitoral para campanhas, impondo limitações, intensificando a fiscalização e aumentando as penalidades, resultado das Leis n.11.300/2006, n.12.034/2009, Lei n.12.891/2013, Lei n.13.107/2015 e n.13.165/2015, que introduziram alterações no Código Eleitoral, na Lei dos Partidos Políticos n.9.096/95 e na Lei das Eleições n.9.504/97. Esta questão chegou ao ápice, em 2015, com a proibição de doações empresariais a campanhas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.4.650.
Em 2016, tivemos, ainda, a Lei 13.303/2016, que proibiu a nomeação de mandatários, dirigentes partidários, assessores de campanhas eleitorais, dirigentes sindicais, ministros, secretários e afins, representantes de órgão regulador vinculado, de particulares contratantes, bem como parentes consanguíneos até terceiro grau destas pessoas, para o conselho de administração ou diretoria de empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Estamos assistindo, no momento, a discussão sobre extinção do foro privilegiado (Proposta de Emenda Constitucional 13/2013), questão que também será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sem falar no vendaval de denúncias que assola o Governo e o Congresso Nacional.
Como se vê, são muitas as ferramentas de accountabilily instituídas no Brasil desde a Constituição Federal de 1988, sejam elas legais, políticas, institucionais, judiciais, sociais. Esses inúmeros métodos vêm permitindo maior fiscalização e responsabilização, mas não necessariamente, maior governança ou governabilidade. As mudanças têm sido estabelecidas a partir de enormes esforços e revoluções sociais, mas, ainda, com resultados recalcitrantes, fruto de uma cultura oligárquica e patrimonialista. Nas palavras de Raimundo Faoro[4] “deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido de rompesse, nem o odre rebentasse”.



[1] Apud PINHO, J.A.G.; SACRAMENTO, A.R.S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 6, p.1343-1368, nov-dez. 2009
[2] CAMPOS, A.M. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, fev./abr. 1990.
[3] PEREIRA, L.C.B. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Lua Nova, v. 45, p. 49-96, 1998.
[4] FAORO, R. Os donos do poder. A formação do patronato brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: Globo, 1979.