O tema fidelidade partidária é muito debatido e repleto de polêmicas e
alterações legislativas e jurisprudenciais ao longo dos anos.
No entanto, a maior polêmica da
fidelidade partidária começa no chão de fábrica dos partidos políticos e as
alterações legislativas acabam sendo resultado da pressão dos congressistas
eleitos por estes partidos, que terminam por promover mudanças na lei para
proteger o interesse político do momento.
A polêmica da (in)fidelidade partidária,
contudo, antes de ser um assunto tratado pela legislação, é tema regulado pelos
próprios partidos em seus Estatutos.
A ótica partidária é pautada pela
blindagem do partido frente à volatilidade de seus filiados eleitos, o que se
faz com a adoção normas rígidas (e nem sempre legais) nos Estatutos Partidários,
tanto para escolha de candidatos nas convenções eleitorais, quanto para punição
da infidelidade partidária.
Normalmente, no período de filiações
partidárias, os futuros candidatos se “apaixonam” pelos partidos, e esta
relação vai se estremecendo ao longo do desdobramento do calendário eleitoral.
Estas divergências passam pela “queda de
braços” entre alguns pré-candidatos e partidos na escolha daqueles que se
lançarão candidatos, o que inclusive vem motivando o debate sobre candidaturas
avulsas.
A tensão se agrava no período de
propaganda eleitoral em decorrência da insatisfação dos candidatos com a
quantidade e qualidade dos materiais de campanha distribuídos pelos partidos e
também no montante dos recursos financeiros aplicados nas diversas
candidaturas. Estas insatisfações se verificam não apenas em disputas federais
e estaduais, mas também nos menores municípios, já que a dinâmica partido versus candidato se repete em
todos os níveis partidários.
O ápice da divergência entre partidos e
candidatos ocorre após a posse dos eleitos, quando os partidos objetivam deter
controle sobre os mandatos e os eleitos passam a defender suas desvinculação e
autonomia. É a partir daí é que surgem os principais embates.
Para exercer o controle de seus
mandatários eleitos, os partidos mantêm em seus Estatutos regras rígidas de
disciplina partidária, cuja inobservância e desobediência leva a processos internos
de expulsão e aplicação de penalidades.
O que vemos no cenário atual dos
Estatutos Partidários em vigor são regras de disciplina partidária cuja
aplicação prática não encontra mais respaldo na legislação e evolução da jurisprudência
eleitoral, com ênfase especial aos clamores da democracia intrapartidária.
Ocorre que ainda há Estatutos
Partidários vigentes que copiam trechos inteiros da Lei Orgânica dos Partidos
Políticos 5.682/1771 vigente no período da Ditadura, quando as fichas de
filiação partidária ainda eram expedidas, homologadas e arquivadas pelos
cartórios eleitorais e as convenções partidárias só podiam ser realizadas aos
domingos. Apenas destacando, a Lei dos partidos vigente hoje é de 1995 (Lei 9.096/1995)
e há Estatutos Partidários vigentes com trechos da Lei Orgânica dos Partidos
Políticos de 1771.
A exemplo disso, temos em vigor nos
Estatutos Partidários disposições como:
a)
Cobrança
de taxas partidárias para inscrição de registro de candidatura;
b)
Comprovação
de quitação de contribuições partidárias compulsórias para participação em
convenção eleitoral;
c)
Recolhimento
compulsório em favor da agremiação de percentual da remuneração de cargos
eleitos ou nomeados em gabinetes e secretarias dos eleitos, em regra, 10% (dez
por cento);
d)
Indicação
pelas greis de percentual de filiados ou pessoas vinculadas a dirigentes
partidários na composição da assessoria de gabinetes e secretarias dos
candidatos eleitos, normalmente de 20% (vinte por cento) a 50% (cinquenta por
cento) dos cargos disponíveis;
e)
Previsão
de perda de mandato em caso de expulsão ou desfiliação do partido, inclusive
para cargos majoritários, quando a lei e a jurisprudência já aboliram esta
possibilidade;
f)
Exigência
de indenização ao partido em caso de expulsão ou desfiliação calculada em
salários mínimos ou em percentual da remuneração do cargo eletivo, indenizações
estas, inclusive, cobradas em ações judicias perante a justiça comum;
Hoje é sabido que muitas destas
previsões se chocam com princípios democráticos e afrontam a legislação em
vigor, pois não priorizam a democracia interna partidária, permitem a
ingerência exagerada de partidos em cargos públicos e apresentam caráter de
centralização de poder político partidário.
Assim, a jurisprudência eleitoral vem
refutando veementemente cobrança de taxas partidárias para lançamento de
candidaturas e contribuições partidárias compulsórias; estas últimas,
inclusive, devem ter caráter espontâneo e jamais podem ser fixadas com base em
percentual sobre a remuneração de cargos públicos. Ademais, a jurisprudência
eleitoral coíbe a prática partidária de reter percentual para indicação de
cargos comissionados nos gabinetes e secretarias dos eleitos, modus operandi que mais se assemelha aos
antigos “currais eleitorais”.
E por que os partidos políticos preferem
manter estes dispositivos em seus Estatutos? A motivação está centrada
exatamente nas disputas entre partidos e seus eleitos sobre a disciplina
partidária.
Tais previsões permanecem nos Estatutos
Partidários até os dias atuais pois, na apresentação de alterações estatutárias
parciais, os partidos, via de regra, obtém do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
somente a análise igualmente parcial, razão pela qual os dispositivos em
descompasso com o ordenamento jurídico vigente não eram revisitados por aquela
Corte.
Contudo, desde 2018, ao receber
alterações estatutárias parciais, a Procuradoria Geral Eleitoral (PGE) vem
promovendo revisão geral dos Estatutos Partidários, glosando não apenas os
artigos em fase de alteração, mas também os demais dispositivos que não se
coadunam com a realidade jurídica atual.
No entretanto, esta análise não pretende
apenas imputar aos partidos a tentativa de centralização de poder. Outras
razões motivam os grêmios partidários a lutarem pela manutenção da força de
seus Estatutos perante seus filiados, especialmente os ocupantes de cargos
eletivos.
Ilustro com fato ocorrido no ano de 2015. Até então, as justas causas para desfiliação
partidária sem perda de mandato estavam regulamentadas pelo Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) na Resolução 22.610/2007. No texto, as justas causas vinham
elencadas artigo 1º, parágrafo 1º, estabelecendo incorporação ou fusão do
partido (inciso I), criação de novo partido (inciso II), mudança substancial ou
desvio reiterado do programa partidário (inciso III) e grave discriminação
pessoal (inciso IV).
A Lei 13.165/2015 fez incluir na Lei
9.096/1995 o artigo 22-A, dando força de lei às causas de desfiliação sem perda
de mandato, sem contudo incluir em seu rol a criação de novo partido.
Simultaneamente, estavam em fase de
aprovação perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) os pedidos de registros
do NOVO, registrado em 15/09/2015, do REDE (Rede Sustentabilidade) – registrado
em 22/09/2015 e do PMB (Partido da Mulher Brasileira), registrado em
29/09/2015.
Consubstanciado no entendimento de que a
nova lei entrou em vigor posteriormente ao registro dos citados partidos (com
exceção do PMB, que foi registrado no mesmo dia da publicação da lei,
29/09/2015) e que a justa causa estaria amparando os eleitos nos 30 (trinta)
dias seguintes à criação de novo partido, o REDE ingressou no Supremo Tribunal
Federal (STF) com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.398/2015, de
relatoria de eminente Ministro Luís Roberto Barroso, alcançando medida cautelar
que assegurou aos novos partidos a migração de mandatários sem prejuízo dos
mandatos.
Este fato gerou em 2015 a migração de
mais de 20 (vinte) Deputados Federais dos partidos que os elegeram em 2014, com
destino aos novos partidos, sendo que o PMB recebeu a maioria deles.
Posteriormente, com o advento a Emenda Constitucional 91/2016, conhecida como “janela
constitucional”, o PMB passou a contar com apenas um Deputado Federal, sendo
que todos os demais parlamentares migraram para outras siglas partidárias,
realizando um verdadeiro “trampolim”.
O prejuízo amargado pelos partidos de
origem, por sua vez, foi que a migração dos Deputados Federais às novas siglas
com amparo da medida cautelar da ADI 5.398/2015 permitiu aos parlamentares
carregarem os votos obtidos em 2014 para as novas legendas, que passaram a
fazer jus ao correspondente de Fundo Partidário e Direito de Antena. Com isso,
os partidos de origem, que viabilizaram e aplicaram recursos naquelas candidaturas,
perderam acesso aos valiosos recursos públicos respectivos. Como é sabido, os
votos dados a Deputados Federais correspondem ao recebimento correspondente de
Fundo Partidário e tempo de televisão e rádio para os partidos políticos que os
elegem, mas conforme legislação vigente à época, tais votos eram carregados
pelos parlamentares na migração partidária fundada em justa causa.
A polêmica foi solucionada em 2018,
portanto, quase três anos depois, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que
acatou pedido formulado pelos partidos prejudicados e determinou a restituição
dos recursos correspondentes de Fundo Partidário e tempo de televisão e rádio às
greis que originalmente elegeram os Deputados trânsfugas.
Para grandes partidos, a perda
temporária de tais recursos pouco impactaram as eleições municipais de 2016. De
outra sorte, para partidos pequenos, que perderam todos os seus Deputados
Federais nesta migração, atravessar as eleições municipais de 2016 tendo
perdido o repasse correspondente de seus recursos públicos (Fundo Partidário e
Direito de Antena) fez toda diferença.
É sabido que as eleições municipais
constituem o esteio, a forração para o desempenho partidário nas eleições
gerais, já que é nas eleições locais é que são formadas as bases para o sucesso
do partido no pleito seguinte.
O fato aqui narrado comprometeu o
desempenho dos partidos que perderam muitos Deputados Federais em 2015 (e
portanto, acesso a recursos públicos) frente à Cláusula de Barreira das eleições
de 2018. Prova disso é que, partidos que perderam mandatários e atravessaram as
eleições municipais de 2016 com poucos recursos não apresentaram o desempenho
mínimo exigido na Emenda Constitucional 97/2017 e seguem ansiando por um bom
desempenho nas eleições municipais de 2020 (base para 2022) ou estudando a
formalização de incorporação ou fusão com outro partido.
Por esta razão os partidos políticos
ainda resistem em retirar de seus Estatutos regras rígidas disciplina e
fidelidade partidárias, que sabidamente estão em desuso e são até mesmo
arcaicas. Fato é que, muitas vezes, o arrefecimento de tais disposições pode
resultar no naufrágio de projetos políticos de longo prazo e até mesmo na
extinção de greis partidárias que acabam optando pela fusão ou incorporação
como forma de sobrevivência de seus grupos políticos.
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